RECONCILIAR-SE

Projetar travessias sobre o Rio Capibaribe é, acima de tudo, um gesto de reconciliação. Reconciliação com o corpo d’água que estrutura e define, junto ao mar, a ocupação da cidade em seus 485 anos de história, bem como sua atmosfera estuarina. Reconciliação com o potencial urbano, estratégico, econômico e natural do rio e sua flora circundante - o mangue - aos quais a cidade tem paulatinamente voltado suas costas. É enxergar o projeto como instrumento de conexão em um contexto onde o Capibaribe é tido como ferramenta de segregação entre a cidade e seus habitantes.

PREMISSAS / PARQUE CAPIBARIBE

A proposta insere-se como parte do conjunto de ações imaginadas para implementação do Parque Capibaribe, projeto integrante da iniciativa Recife 500 Anos. Neste sentido, incorpora, em sua integralidade, as premissas e objetivos apresentados neste escopo.

Os trechos 01 (Santana-Torre) e 02 (Graças-Torre) estipulados para a implementação das travessias integram a macrozona batizada “Águas do Meio do Mundo” pelos idealizadores do parque. Rica em história e atmosferas da urbe, esta porção específica do território abriga respiros urbanos caros ao Recife, entre eles, o Jardim do Baobá - marco zero da implementação do Parque Capibaribe -; Parque da Jaqueira, Parque Santana, Praça Antônio Maria - arranque da cabeceira “A”. Também compõem esta paisagem edifícios e equipamentos históricos de suma importância, a exemplos da estação da Ponte d’Uchôa, a Academia Pernambucana de Letras, Igreja do Colégio Damas, Capela N. Sra. da Conceição das Barreiras, Conselho Estadual de Educação - arranque da cabeceira “C” -, Fábrica da Torre e Museu do Estado de Pernambuco.

Todavia, a cidade também se manifesta suprema e desigual socioeconomicamente nesta macrozona, abrigando uma amálgama outras tipologias arquitetônicas urbanísticas como condomínios residenciais privativos, residências unifamiliares, conjuntos habitacionais, escolas, comércios, supermercados, hospitais, indústrias, entre outros. Em meio a este palimpsesto urbano e levando-se em consideração a potencialidade de implementação de mais 10 travessias ao longo do Capibaribe, pressupõe-se aqui que as passarelas projetadas devam ser pautadas por silêncio e abstração, em complementação e respeito tanto à diversidade, quanto à mutabilidade urbana do Recife. Deste modo, buscamos devolver o protagonismo ao Rio e assumir a natureza infraestrutural destes equipamentos no endereçamento e transposições pela cidade ao longo de toda a extensão do corredor ecológico composto pelo Capibaribe e o parque.

Entendemos que as passarelas possam funcionar como um diapasão à paisagem fluvial do Recife

ENTRE AR E ÁGUA

Condicionadas a uma natureza sistêmica de aplicação no decorrer de todo o Rio Capibaribe, as travessias projetadas conciliam duas apreensões complementares sobre o espaço. Ao serem concebidas em dois níveis, propõe-se aqui uma franca relação com o corpo hídrico do Capibaribe, articulando o tabuleiro superior - doravante denominado lado ar - com o tabuleiro inferior - lado água.

Com vistas a propiciar a ascensão dos usuários na travessia entre bairros do Recife, o lado ar estende-se, de cabeceira a cabeceira, pairando a uma cota de aproximadamente 7 metros de altura do rio, descortinando-se o horizonte e ressignificando o olhar dos transeuntes a um nível outrora inexistente sobre a cidade. Pautado por uma acepção democrática e isonômica da travessia, pedestres e ciclistas compartilham deste nível morfologicamente dinâmico que oferta mais do que apenas transposição, oferece a potencialidade de contemplação e trocas acima do rio, com a articulação de canteiros, espaços de mirada, bancos, etc.

Por sua vez, o lado água propõe uma reconexão da população com o rio. Distante 3,40m do Capibaribe, passarelas atirantadas são dispostas para possibilitar mais do que o gesto de atravessar, mas, sobretudo, o encontro, o imprevisível e a contemplação do “cão sem plumas”.

Este arranjo mostra-se oportuno uma vez que visamos, como premissa fundamental, impactar o mínimo possível o território natural. Assumindo-se vãos livres da ordem de 50 e 25 metros entre mangue, margens e calha do rio, a articulação destes espaços por meio de um par de treliças planas em madeira laminada colada possibilita, sem demasiados esforços, a viabilidade construtiva destas peças que costuram cidade, mangue e rio.

CIDADE - MANGUE - RIO

Estabelecidas como tônicas definidoras desta proposta, as cabeceiras assumem o importante papel de comungar as diversas escalas e dinâmicas entre cidade e as travessias. A chave de leitura, entretanto, não se dá em um entendimento linear e longitudinal do percurso no comprimento do rio, mas em uma transposição vertical e transversal desde os bairros, ruas e calçadas, apropriando-se do mangue e culminando no Capibaribe.

Este percurso, simbolizado nas três figuras da mencionadas, é viabilizado por meio de um cânone construtivo regional: as palafitas. Método construtivo delicado e racional de se edificar sobre terrenos úmidos, carrega de sentido a apropriação delicada que propomos, uma vez que possibilita a manutenção do caminho das águas pluviais em direção ao rio, além de minimizar os impactos na topografia e geografia existentes. As plataformas geradas pela articulação das palafitas reforçam as diretrizes de ocupação determinadas pelo Parque Capibaribe e satisfaz, em conjunto com as travessias, os conceitos de “chegar, percorrer, atravessar, abraçar e ativar”.

De modo a consolidar a visão do Parque Capibaribe como um corredor ecológico, as plataformas e palafitas mostram-se como morfologias apropriadas, uma vez que propiciam, tanto quanto seja possível e conveniente, a manutenção de fauna e flora do mangue. Assim imaginamos estas travessias: espaços de reconexões pacíficas entre a cidade do Recife com seus patrimônios naturais.

RECONCILIATION

Designing crossings over the Capibaribe River is, above all, an act of reconciliation. Reconciliation with the body of water that structures and defines, alongside the sea, the city's occupation over its 485 years of history, as well as its estuarine atmosphere. Reconciliation with the urban, strategic, economic, and natural potential of the river and its surrounding flora - the mangrove - to which the city has gradually turned its back. It is seeing the project as an instrument of connection in a context where the Capibaribe is seen as a tool of segregation between the city and its inhabitants.

PREMISES / CAPIBARIBE PARK

The proposal is part of the set of actions envisioned for the implementation of the Capibaribe Park, a project within the Recife 500 Years initiative. In this sense, it fully incorporates the premises and objectives presented in this scope.

Sections 01 (Santana-Torre) and 02 (Graças-Torre) designated for the implementation of the crossings are part of the macro-zone named "Waters of the Middle of the World" by the park's creators. Rich in history and urban atmospheres, this specific portion of the territory houses urban oases cherished by Recife, including the Baobab Garden - ground zero for the implementation of the Capibaribe Park -; Jaqueira Park, Santana Park, Antônio Maria Square - starting point of the "A" head; and historical buildings and facilities of utmost importance, such as the Uchôa Bridge station, the Pernambuco Academy of Letters, Damas College Church, Nossa Senhora da Conceição das Barreiras Chapel, State Council of Education - starting point of the "C" head -, Torre Factory, and the Pernambuco State Museum.

However, the city also manifests itself supremely and unequally socioeconomically in this macro-zone, housing an amalgam of other urban architectural typologies such as private residential condominiums, single-family residences, housing complexes, schools, businesses, supermarkets, hospitals, industries, among others. Amidst this urban palimpsest and considering the potential implementation of 10 more crossings along the Capibaribe, it is presupposed here that the designed footbridges should be guided by silence and abstraction, complementing and respecting both the diversity and urban mutability of Recife. Thus, we seek to restore the protagonism to the river and assume the infrastructural nature of these facilities in addressing and crossings throughout the city along the entire length of the ecological corridor composed of the Capibaribe River and the park.

We understand that the footbridges can function as a tuning fork to the river landscape of Recife.

BETWEEN AIR AND WATER

Conditioned to a systemic nature of application throughout the Capibaribe River, the designed crossings reconcile two complementary apprehensions about space. By being conceived on two levels, a frank relationship with the Capibaribe water body is proposed here, articulating the upper deck - hereinafter referred to as the air side - with the lower deck - water side.

In order to facilitate the ascension of users in the crossing between neighborhoods of Recife, the air side extends from head to head, hovering at a height of approximately 7 meters above the river, unveiling the horizon and redefining the perspectives of passersby to a level previously nonexistent over the city. Guided by a democratic and egalitarian conception of the crossing, pedestrians and cyclists share this morphologically dynamic level that offers more than just transposition; it offers the potential for contemplation and exchanges above the river, with the articulation of flowerbeds, viewing areas, benches, etc.

In turn, the water side proposes a reconnection of the population with the river. Positioned 3.40m from the Capibaribe, cable-stayed footbridges are arranged to enable more than just the act of crossing, but, above all, the encounter, the unpredictable, and the contemplation of the "dog without feathers".

This arrangement proves opportune as we aim, as a fundamental premise, to impact the natural territory as minimally as possible. Assuming free spans on the order of 50 and 25 meters between mangroves, banks, and the riverbed, the articulation of these spaces through a pair of flat laminated wooden trusses enables, without excessive effort, the constructive feasibility of these pieces that stitch together the city, mangrove, and river.

CITY - MANGROVE - RIVER

Established as defining themes of this proposal, the heads play an important role in sharing the various scales and dynamics between the city and the crossings. However, the key to reading does not lie in a linear and longitudinal understanding of the route along the length of the river but in a vertical and transversal transposition from the neighborhoods, streets, and sidewalks, appropriating the mangrove and culminating in the Capibaribe.

This journey, symbolized in the three aforementioned figures, is made possible through a regional constructive canon: stilt houses. A delicate and rational construction method for building on wetlands, it lends meaning to the delicate appropriation we propose, as it allows for the maintenance of the path of rainwater towards the river, as well as minimizing impacts on existing topography and geography. The platforms generated by the articulation of the stilts reinforce the occupancy guidelines determined by the Capibaribe Park and, together with the crossings, satisfy the concepts of "arriving, traversing, crossing, embracing, and activating".

In order to consolidate the vision of the Capibaribe Park as an ecological corridor, the platforms and stilts prove to be appropriate morphologies, as they provide, as much as possible and convenient, for the maintenance of the fauna and flora of the mangrove. Thus, we envision these crossings as spaces for peaceful reconnections between the city of Recife and its natural heritage.


TRAVESSIAS CAPIBARIBE

2022
Igor Campos, Hermes Romão, Filipe Bresciani
Camila Zem, Lorena Leonel, Máwere Portela

Menção Honrosa | Travessias Capibaribe — Concurso Nacional de Passarelas no Recife

Recife-PE, Brasil
6.200m²

Estrutura em MLC - ITA Construtora
Estrutura em concreto e fundações - BVA Engenharia

Hermes Romão

Ano / Year:
Arquitetura / Architecture:
Colaboradores / Collaborators:

Premiação / Awards:


Localização / Location:
Área construída / Built area:

Estrutura / Structure:


Imagens digitais / Digital Images: